quarta-feira, 4 de julho de 2007

O rumo ao muro

Quando eu era pequeno, pouco entendedor de ironias e duplos sentidos, como a maioria das crianças, não entendia quando Roberto Carlos cantava: "tudo certo como dois e dois são cinco", versos da música de Caetano Veloso, "Como dois e dois". Não entrava na minha cabeça, limitada e matemática, por mais que me explicassem que isso queria dizer que estava tudo errado. Hoje, interpreto essa frase não apenas como uma afirmação de que tudo está errado, mas de que nada, ou quase nada na vida é apenas certo ou errado, a não ser a matemática. A vida não é uma ciência exata.

Talvez por isso, desde que eu me entendo por gente (se é que eu já me entendo como tal), acostumei-me a ouvir argumentos e, não raro, mudar de opinião, mudar de lado, quando o lado oposto me convence. Gosto de ser convencido do contrário, sinto-me uma pessoa melhor depois disso, crescendo em aprendizado. Como uma seixiana metamorfose ambulante, mas consciente.

Passar uma temporada em cima do muro, local privilegiado onde vislumbramos os dois lados, numa visão ampla, aberta e transigente, acreditem, pode ser, também, uma experiência boa e, às vezes, mais enriquecedora do que simplesmente entrar numa discussão com opinião formada e firmada, sem cogitar mudanças que não sejam na idéia alheia, sem possibilidade de acordo, parecendo, em vez de estar em cima, ser o próprio muro, estático.

Em certas situações da vida, em que não sabemos de que lado ficar, ou, como num palíndromo analítico-existencial, por um lado ou por outro não vemos diferença, o rumo ao muro é o melhor caminho. Ou uma escala, que devemos seguir sem medo nem culpa, com firmeza, como dois e dois são quatro. Ou cinco...

quinta-feira, 28 de junho de 2007

Baixio das Bestas

“Amarelo Manga” era, na minha idéia, apenas um filme para o gosto da observação do grotesco em parques humanos. Em parte, isso se dava pelo que eu pensava ser a falta de verossimilhança dos personagens. O exagero na representação das perversões excluiria aqueles tipos do círculo da possibilidade. Assim se quebrava o discurso da degradação humana no submundo; aquilo era demais para ser possível.

“Baixio das Bestas” iluminou, re-significou e aperfeiçoou “Amarelo Manga” na minha idéia.

Ficou eficientemente revelado o sentido da exploração de tipos grotescos: que o espectador atentasse às suas próprias perversões, deixando de perceber o velho avaro, o caminhoneiro tarado, a cafetina escrota e o filhinho de papai psicopata, apenas como os outros, mas como faces do fenômeno humano, de que ele, espectador, também é manifestação. Como negar o prazer erótico produzido pelo banho de rio de Auxiliadora, mesmo depois de ver que a moça é forçada pelo velho Heitor a expor o seu corpo, por dinheiro, nos fundos de uma igreja, para caminhoneiros sedentos de sexo? A vítima, esfregando-se no rio, se expõe também ao espectador como objeto de prazer, gerando neste a sensação ambígua e moralmente incômoda de identidade com aqueles que sustentam a sua opressão e humilhação.

As ações se dão numa economia paralela à economia da cana-de-açucar, do plantio à queimada. Como subprodutos, as perversões de exploradores e de explorados, que assim adquirem o caráter de problema social. Nesse contexto, apenas o sexo e o dinheiro regem os interesses entre as pessoas, numa espécie de sistema de trocas rude, reduzido ao grau mínimo de humanidade, cujas interações culminam sempre em violência.

O velho Heitor é um dos agentes econômicos mais atuantes neste cenário. No início apresentado como um moralista típico, vai-se descobrindo aos poucos que o buraco é bem mais embaixo, assim como a cisterna escavada ao lado de sua casa. Ele também abusa sexualmente de Auxiliadora, de quem, numa conversa no final do filme: dizem que é sua filha e neta. O personagem diluído ao longo da história é muito mais convincente e serve bem à distribuição das tensões no enredo.

O determinismo de “Baixio das Bestas” tem também melancolia. É o semblante sério sofrido dos cortadores de cana, enquadrados, na carroceria de um caminhão, como paisagem, retrato da imobilidade social, na velocidade da máquina. Situação cotidiana, outras perversidades do baixio, outras bestas.

Num filme com tanta bunda, peito e pica, estupro, sangue e sadismo, é uma boca desdentada de um cortador de cana que mais impressiona, aberta, para cima, vibrando à espera do sumo de um bagaço, desesperadamente torcido até a última gota, como a aplacar o desejo de uma besta faminta.

segunda-feira, 25 de junho de 2007

Como eu quero

Vi por acaso Paula Toller comentar um encontro que teve com Chico Buarque quando ela tava começando. E esclarecer pra ele que o "Tira essa bermuda que eu quero você sério" implicava na idéia de trocá-la por outra roupa. Ele não entendia alguém ficar mais sério sem bermuda.

Eu também não pensava na troca. Mas entendia assim: o cara ia ficar sério de intimidação pela mulher dizendo pra ele tirar a bermuda. A mesma mulher que não se impressionava com tramas do sucesso, mundo particular nem solos de guitarra. Que fala do seu domínio, longe do qual ele ficaria de mal a pior. Que se põe na posição de ensiná-lo e de tranformar seu rascunho em arte final (e esse é justamente o momento criativo que distingue o bom artista, marca sua censura das imperfeições do objeto inicial). A mulher que, enfim, o coloca numa cilada, e agora não tem jeito.

E essa interpretação me ajudava a ver que a letra tem sua graça.

Obs.: "Troca essa bermuda que eu quero você sério" seria mais preciso, mas não soaria muito bem.

domingo, 24 de junho de 2007

Escola do Riso

Não é muito comum a idéia de que o problema da postura do artista sob censura - tão familiar no Brasil, em história e mito - nos leve a alguma aproximação com o Japão. Escola do Riso se passa nos anos 40. É sobre o escritor de comédias teatrais populares Hajime Tsubaki, que suporta muito pra salvar sua obra do engavetamento, adaptanto o texto diante de exigências absurdas do censor, Mutsuo Sakisaka. Dá pra subverter seguindo a regra do jogo?

É sempre bom um filme preciso e econômico como esse, que mostra nascer e se desenvolver a cumplicidade entre os dois, mais as tensões que brotam daí. Quase tudo numa sala de repartição. Tem um bocadinho de recurso fácil de humor, mas se releva, talvez pela atmosfera de ingenuidade.

Lembrei desse filme hoje, por causa de um vídeo.

domingo, 13 de maio de 2007

Na Cama

Um casal de desconhecidos numa cama de motel.

Poderia ter sido pior, não fosse o claro contraste entre a conversa e a trepada. De encontro à frivolidade morna do diálogo entre Bruno e Daniela, sexo dinâmico, autêntico, calado. À troca de palavras, só de palavras, eis que de idéias, vazias, ou já saturadas de senso comum, a ponto de não veicularem qualquer novidade para si ou para o público - a transferência safada de fluidos.

Esse foi o trunfo, aliás. Porque depois do orgasmo, iam se amontoando lugares-comuns da nossa cultura (no Chile ou no Brasil) em falas despersonalizadas; os personagens se anulando completamente ao discurso fantasma, requentado milhares de vezes aqui e ali, e, até os atores iam malatuando antipáticos.

Um sempre assim agoniante estendendo o anti-orgasmo em palavras broxas: nem tensão, nem tesão. Intenção, por parte do diretor, houve? Quer dizer, queria ele, com as falas e a falta de espírito dos personagens, realizar um meta-discurso? Acho que não, ele as pretendia autênticas. Tanto que o sentimentalismo do desfecho aponta para um aprofundamento da relação entre Bruno e Daniela, que, ainda assim, resta emulado.

Mas o caso é que havia um contraponto óbvio entre as cenas de sexo e as cenas de fala, revelando-se naquelas os alguns minutos de integridade dos personagens. Mais longe da fala, mais perto do falo, mais autênticos, mais humanos e menos objeto eram Bruno e Daniela.

Quando, afinal, acontece a situação muito típica da camisinha furada, homem e mulher se apropriam dos seus discursos e tratam de distribuir responsabilidades, amadurecendo imediatamente, ante o que há de não utilitário no acontecimento. Depois, reconciliam-se, novamente na palavra oca.

Outra leitura possível: um casal de desconhecidos conhece, em apenas uma noite no motel, a dinâmica da convivência, perpassada por aproximações e distanciamentos mediados pelo sexo.